Fotos: Nélida Piñon, os irmãos Adailton e Adailma Medeiros e o livro “Tempo das Frutas”.
Muitas foram as pessoas que manifestaram seu pesar pelo falecimento da grande escritora brasileira Nélida Piñon, ocorrido dia 17 de dezembro deste 2022, em Lisboa, Portugal.
O mundo acadêmico, jornalístico e cultural, em especial o da cultura literária e livreira, rendeu merecidas homenagens a Nélida, que em sua vida de 85 anos também fora sobejamente — melhor, merecidamente – reconhecida, louvada, premiada.
Não faltaram os que, sabendo de algo esconso, declivoso, enviesado, em torno da notável escritora, igualmente a expuseram, como o fato de Nélida ter formalmente deixado, como herança, rico patrimônio para suas duas… cachorrinhas.
Entre os que se manifestaram sobre Nélida havia os que sequer a conheciam, embora lhe conhecessem a obra. E entre os que a conheceram houve quem não mais pudesse demonstrar ou quem o demonstrasse de modo contido, contrito, consigo. Estes são o caso de dois caxienses, que, moradores no Rio de Janeiro, conheciam Nélida Piñon.
Adailton Medeiros e Adailma Medeiros, de tradicional família de Caxias, chegaram ao Rio em 1961, quando a capital fluminense mal deixara de ser capital brasileira, no ano anterior.
Adailton, primogênito, e Adailma, a segunda, dois entre dez irmãos, eram trabalhadores e estudiosos. Bons nos números e nas letras. Foram, entre outras coisas, técnicos em Contabilidade e também profissionais liberais que “mexiam” com a lei das Letras e a letras das Leis — ele, jornalista; ela, advogada.
Em outra vida, Adailton reencontra Nélida, pois a ela se antecipou (faleceu em 2010, aos 71 anos). Que nem a carioca Nélida, o caxiense Adailton era formado em Jornalismo, em universidades do Rio. Adailton ainda fez mestrado em Ciência da Literatura e foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nélida tornou-se escritora (re)conhecida: sua prosa, em especial romances, contos, ensaios, memórias, mereceu a acolhida internacional, já estando em 30 países e sendo galardoada com prêmios brasileiros e estrangeiros de grandíssimo vulto. Por aqui, no Brasil, Adailton era (ex)posto como um dos principais nomes da Poesia Práxis e com seu nome e produções merecedores de páginas de dicionários literários, livros escolares e antologias poéticas, como a de Manuel Bandeira e Walmir Ayala.
Por sua vez, Adailma Medeiros, até hoje residente em Laranjeiras, mesmo bairro onde, no Rio, morou seu conterrâneo Coelho Netto, dedicava-se às atividades ditas e tidas como mais práticas ou pragmáticas. Estudiosa, formou-se nada menos que em Contabilidade (técnica), Processamento de Dados, Administração e Direito. Tornou-se advogada federal, da União, lotada na Força Aérea Brasileira. Pelos relevantes serviços prestados, Adailma Medeiros recebeu uma das maiores distinções de mérito do Ministério da Aeronáutica: a “Medalha Santos-Dumont”. Ainda em seu noviciado profissional no Rio, Adailma, trabalhou na Editorial Bruguera, filial de conhecida editora de Barcelona (Espanha), que, no Brasil, publicou, entre revistas e livros, inclusive de bolso, títulos e personagens que integraram a paisagem de minha infância e adolescência de leitor, entre os quais “O Coyote”, “Mortadelo e Salaminho”, “Asterix”.
Adailton era o literato, Adailma a leitora. O ponto de convergência, ou de encontro, deles com Nélida Piñon eram os salões, salas e corredores do Petit Trianon, prédio-sede da Academia Brasileira de Letras (ABL), na avenida Presidente Wilson, no centro do Rio. Ali os dois irmãos caxienses, nos diversos eventos da ABL, tiveram oportunidade de estar e prosear com Nélida, sobretudo Adailton, que, àquela altura, já era escritor com conhecimento e reconhecimento de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Antônio Olinto, Eduardo Portella, deles que Adailton encontrava e reencontrava nas tertúlias literárias de fim de semana na residência de Plínio Doyle, tertúlias que ficaram conhecidas, até em poema de Drummond, como “Sabadoyle”.
Entre as centenas de livros com dedicatória de autores mais e menos frequentes na memória nacional, Adailton Medeiros recebeu obras de Drummond, Olinto, Portella, Fausto Cunha e, é claro, Nélida Piñon: “Ao prezado Adailton, muito cordialmente — com estima. Nélida Piñon, 13.9.66”. Está logo ali abaixo do título na falsa folha de rosto do livro “Tempo das Frutas” (1966).
Pouco mais de 56 anos ou exatos 20.549 dias depois de ter lembrado-se do conterrâneo caxiense Adailton Medeiros e lançado seu nome em dedicatória, Nélida Piñon, primeira mulher no mundo a presidir uma academia nacional de Letras, morria. E, no espaço de existência ou de permanência final de seu corpo, seus últimos textos, letras e números, foram escritos pelos outros, inscritos em sua lápide.
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Em seu conto “Vestígios”, Nélida descreve o padecimento — torturante — e morte – brutal — de uma mulher jovem, na verdade, uma menina, 14 anos. A mocinha, de “carnes duras e joviais”, estava entre monstros, os quais, bestialmente famintos, canibalizaram a desafortunada humana e “não pensaram aproveitá-la para os gozos do amor” — o que seria tão ultrajante e tão mortal quanto a morte.
E eis que, ao encontrarem um broche com aquele retrato de mulher jovem, os monstros, saciados da fome, com a foto alimentam o olhar e algum sentimento. O rosto da mocinha projetou-se funda e pesarosamente na mente inumana daquelas criaturas abomináveis. Cada um olhou. Fixa/mente. Duradoura/mente.
“Os monstros choraram”.
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Com a vida de seu texto e com a morte de sua vida, Nélida faz chorar…
EDMILSON SANCHES
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