CPI da pandemia, abuso de autoridade e prerrogativas dos advogados

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O país vive momento dramático. O mundo também. A pandemia de COVID-19 que assola o planeta trouxe mortes, pobreza, tristeza e outras mazelas à comunidade mundial. Em números proporcionais e absolutos, diversos países foram igualmente afetados. Contudo, só no Brasil, o tema virou questão política e criminal, com intervenção do judiciário, diversas operações policiais e, no momento, uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI.


Na CPI, os direitos e garantias individuais processuais estão sendo gravemente violados. Não se distingue, adequadamente, quem é investigado ou testemunha, em um jogo de circunstâncias ao sabor da Comissão. Não se respeita o direito absoluto ao silêncio e de não autoincriminação – com complacência de parte do STF. Há ameaças recorrentes via o poder de prisão, de quebra de sigilos e outras medidas constritivas as quais, inclusive, vem sem a devida delimitação e fundamentos.


Assistiu-se, com silêncio eloquente da opinião pública, da OAB e das associações do direito de defesa e dos juristas por democracia, a determinação de prisão de testemunha, sem crime, por divergência de fala, para intimidar. Viu-se o horror autoritário da coação de testemunha a falar o que se pretendia ouvir, com sucessivos atos de interrupção, intimidação, indução. Recorrente, ainda, o cerceamento de defesa, pois que ora colocam a parte como testemunha, ora como investigado, sem acesso ao inteiro teor, previamente, dos documentos e dos processos. Há pré-julgamento e uma anunciada decisão clara pela condenação ou indiciamento, antes do fim do processo. Finalmente, o flagrante desrespeito ao que é essencial à administração da justiça, ou seja, às prerrogativas dos advogados, em desconforme ao determinado e assegurado pelo art. 133 de a Constituição disciplinado pela Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia).


Ora, a Constituição garante às partes em um processo com o devido processo legal, o direito ao contraditório, à ampla defesa, ao juiz natural, ao direito recursal, o direito de produzir provas, o direito ao silêncio, à intimidade, à privacidade, o direito à comunicação ampla e irrestrita com seu advogado, à presução de inocência e, com a lei de liberdade econômica e a lei de introdução ao direito brasileiro, o direito à presunção de boa-fé e veracidade de suas alegações, cabendo a quem contesta, provar, de forma contundente e mediante contraponto, o contrário.
Ademais, está na lei de abuso de autoridade que é crime:

  1. Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, conforme pode ter sido feito ou ameaçado na CPI;
  2. Constranger a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo, como pode se ter assistido ao vivo na CPI, para todo o país;
  3. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal, como muitas vezes se requer, na CPI, inclusive quanto a documentos ou eventos resguardados por sigilo, privacidade ou intimidade;
  4. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação, como, a todo tempo pode ser visto, na CPI, seja nas sessões ou nas entrevistas, afirmações de que existiu corrupção, organização criminosa, falso testemunho, genocídio e outras atribuições de culpa, durante o processo, antes de seu encerramento.
    Por sua vez, são prerrogativas dos advogados que podem estar vilipendiadas:
  5. receber tratamento à altura da dignidade da advocacia, pois mão há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, Congressistas, devendo todos tratarem-se com consideração e respeito recíprocos, mas se viu mais de uma vez, na CPI, advogados acuados, com palavra cassada ou calada, e até objeto de chacota sob estar ou não ruborizado;
  6. Estar frente a frente com o seu cliente, até mesmo quando se tratar de preso incomunicável. A comunicação não se limita ao contato físico, mas abrange também a troca de correspondências, telefonemas ou qualquer outro meio de contato, aos quais deve igualmente resguardado o sigilo profissional, mas, a todo tempo, querem impedir o advogado de falar com testemunhas e depoentes ao longo das horas de interpelação na CPI;
  7. Ingressar livremente em qualquer assembleia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deve comparecer, mas nem sempre foi permitido na CPI;
  8. Permanecer sentado ou em pé e retirar-se, independentemente de licença;
  9. Dirigir-se diretamente aos magistrados, inclusive aos Senadores nas salas e gabinetes de trabalho, mas na CPI advogado tem sido instado a ficar mudo;
  10. Usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, INCLUSIVE NO SENADO, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que forem feitas, mas na CPI o silêncio tem sido imposto aos advogados de testemunhas e investigados;
  11. Reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, INCLUSIVE NO SENADO, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento, mas a voz da advocacia vem sido tolhida na CPI;
    Isto tudo num contexto mais amplo de violações ao estado democrático de direito. Refere-se, aqui, ao judiciário, que pode estar a julgar e opinar via mídia e redes sociais, cala, cerceia a liberdade de manifestação e pensamento, e prende pessoas sem processo, sem ouvir o Ministério Público.


Direito não é ideologia, como sempre sustentou Kelsen, cientista que baseia todas as minhas pesquisas e teorias, as quais evitariam males como o Nazismo. Quando o direito vira ideologia, é pior que qualquer ditadura, como ocorreu na Alemanha, onde Kelsen foi perseguido, teve familiares presos mortos, e teve que fugir.


Afirmei, tempos atrás, a inconstitucionalidade da prisão de Lula -baluarte da esquerda, pois que a Constituição veda a prisão para cumprimento de pena, antes do trânsito em julgado. Mas ressaltei a necessidade (leia aqui) de reforma processual, em artigo, que, tempos depois, veio se materializar em uma PEC que, preservando acessa garantia, torna os processos mais céleres.. Igualmente, de forma coerente e ética, além de científica, manifestei-me contra a prisão do Deputado Daniel Silveira – e do jornalista Oswaldo Eustáquio, com base em diversos fundamentos (leia aqui). Em todos os casos, minha manifestação científica se deu, a partir da teoria do direito, da descrição do objeto específico e ideologicamente neutro: o direito posto, a saber, a Constituição e as leis.


Assombra, assusta, espanta mesmo, assistir a juristas, notadamente os autoproclamados “democráticos” e “garantistas”, e outros, comemorando, fazendo chacota, com essas arbitrariedades, no Judiciário e na CPI. Amanhã pode ser qualquer um de nós e nossas opiniões. Isso diz mais sobre quem comemora, do que sobre quem está sendo molestado, até porque, não se pode olvidar que “um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado.” (Winston Churchill). Vive-se, infelizmente, a retratada “banalidade do mal”, de Hannah Arendt. Ética, coerência, coragem e, sobretudo, respeito à Constituição e às liberdades e garantias fundamentais, é dever de todos, independente de valores morais, ideológicos, religiosos e políticos.


Neste contexto, nossa democracia virou mero discurso. Mero pedaço de papel, a que sempre se referiu e alertou Lassale, entre os Séculos XIX e XX. Quem, no meio jurídico, de 2013 há 2018 era autoproclamado garantista, virou inquisidor ou defensor de processos nada ortodoxos. É preciso reestabelecer a repartição e harmonia dos poderes, as atribuições do Ministério Público, as prerrogativas da advocacia e as iberdades e garantias individuais. Fora disso, o país e, no caso específico, a CPI da pandemia, expressam ambiente antidemocrático, de abuso de autoridade e reiteradas inconstitucionalidades e à margem da lei, a saber, na pior face do exercício do poder e da política.

Por Georges Humbert.

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